Dias desses bateram em meu portão duas crianças, uma menina de cerca de sete anos e um menino um pouco mais velho. Acredito que fossem irmãos. De vestes humildes e debaixo de um sol escaldante. Ao vê-los imaginei que estivessem pedindo algum auxílio, normalmente dinheiro. Mas, assim que os cumprimentei a menina começou a falar e começaram as minhas surpresas. Disse-me ela: -moço, você não tem latinhas aí para me dar? Respondi que sim, e fui buscar as que tinha, quando retornei ela alegremente me agradeceu e sem que eu perguntasse, disse que estava pedindo latinhas nas ruas para juntar dinheiro e comprar os seus materiais escolares, já que logo iniciariam as aulas. Enquanto falava sorria com brilho nos olhos como antevendo o início das atividades escolares e sua oportunidade de conviver, aprender, enfim, ter uma perspectiva de futuro. Dei a eles as latinhas e alguns trocados, ao que ela surpresa, me agradeceu e seguiu andando pela calçada, com passos firmes e decididos como quem caminha em direção ao futuro…
Os acompanhei com o olhar até virarem a esquina. Fechei o portão, entrei e chorei. Sim, chorei sozinho pensando naquela situação, no tamanho da injustiça social de um mundo onde uma criança precisa sair mendigar para comprar materiais escolares e onde outros tem tanto para escolher e até jogar fora bens e valores. Doeu o meu coração e “quebrou o vidro dos meus olhos”. Disse ao meu Deus, em silêncio: por que isso acontece? Por que essas tristezas e mazelas de um pobre mundo rico? Quanta dor e sofrimento resultante da desigualdade social e da má gestão dos interesses públicos da administração pública em nível nacional, especialmente. A resposta divina (ou da minha consciência) foi que eu, você que está lendo isso e todos nós (sociedade), precisamos nos engajar mais na luta em favor daqueles que pouco ou nada tem; e que apesar de tudo têm o brilho nos olhos e o sonho inocente daquela menina que pedia latinhas para vender e com o dinheiro que conseguisse, comprar cadernos…
Concluindo esse relato ficaram para mim duas lições: a primeira é o tapa na cara que recebi de uma sociedade (na qual me incluo) que não ampara as suas crianças, que visa apenas o lucro e não consegue enxergar o humano, pelo menos como deveria; e, por outro lado, a segunda lição foi a rebeldia dos sonhos. Sim, os sonhos e os desejos, que muitas vezes, mesmo no caos e na mais absoluta miséria, nos fazem ir em frente movido por uma esperança, misturada com a inocência de quem não sabe que é praticamente impossível, e segue a busca dos seus objetivos e assim “corre sérios riscos” de alcançá-los.
Me vi naquelas crianças que contra todas as evidências negativas, não deixam de acreditar que poderão ter um futuro melhor e, talvez até de forma instintiva, entendem que é através da educação (dos estudos) é que poderão alcançar uma melhor e mais justa condição de vida. Há mais de trinta anos eu também contrariava a lógica da exploração e da opressão e saia em busca dos meus sonhos, tendo, com a graça de Deus e com muita luta, conseguido ter uma profissão e uma vida razoavelmente confortável para mim e para os meus. Dessa forma, percebe-se, entre tantas nuances dessa passagem que relatei, que a forma como se vê a vida é que pode fazer toda a diferença. Enquanto eu, já calejado pelos anos vi a tristeza da cena daquelas crianças mendigando para comprar materiais escolares; elas viram nessa oportunidade um meio (talvez o único) de ter acesso a uma vida melhor e mais digna no futuro, e, por conta desse sonho e dessa esperança, enfrentam com alegria as adversidades deste mundo desigual e injusto. Que possamos (como as crianças da história) ver a vida sempre pelo lado bom, e lutar pelo que almejamos, em qualquer fase de nossa caminhada.