Após quase nove anos da tragédia do incêndio da Boate Kiss, o julgamento do caso começou nessa quarta-feira (1º) e simbolizou todos os anos de espera, saudade e busca por justiça. Assim que o julgamento iniciou, às 9h40min da manhã, as redes sociais reservavam apenas um assunto: pessoas compartilhando que se colocavam à postos para assistir o caso, que foi transmitido ao vivo. Nos veículos de comunicação, a imprensa dava os primeiros detalhes do que seria um dia de muitos questionamentos, complexidades e emoções.
O início do julgamento – primeiro dia
O salão do júri começou a ser transitado por servidores do judiciário, advogados da defesa e integrantes da acusação, juntamente com a plateia. Os jurados do caso aguardavam o sorteio em uma sala reservada. O plenário contou com a presença de familiares das vítimas, que prestavam suas homenagens.
O réu Elissandro Spohr, ex-sócio da Boate Kiss, foi o primeiro a chegar. Pela porta dos fundos, entraram no plenário os réus Mauro Hoffman, ex-sócio da boate, e Marcelo de Jesus dos Santos, ex-vocalista da banda Gurizada Fandangueira. O réu Luciano Bonilha Leão, produtor de palco da banda Gurizada Fandangueira, ao chegar no Foro Central, passou mal e precisou de atendimento médico. Luciano retornou ao salão do júri por volta das 10h.
Por volta das 9h40min, foi dado início à sessão do plenário conduzida pelo juiz Orlando Faccini Neto, e foi realizado o sorteio dos sete jurados que irão formar o Conselho de Sentença do júri.
O sorteio dos jurados
Estiveram presentes na sessão do júri 65 jurados, e o juiz Orlando Faccini Neto chamou 25 destes nomes para serem sorteados. Após, foram definidos sete jurados para o Conselho de Sentença do julgamento do caso Boate Kiss, sendo seis homens e uma mulher. Ao final das etapas, são os jurados que decidirão pela absolvição ou não dos réus. A decisão do júri é soberana, e o voto é secreto.
Após a definição do júri, todos ficam incomunicáveis e não poderão conversar entre si, ter acesso a telefone ou redes sociais. Além disso, todos serão acompanhados por oficiais de Justiça durante o júri.
Os depoimentos
A primeira pessoa a depor foi Kátia Giane Pacheco Siqueira, ex-funcionária da Boate Kiss. Kátia foi a sobrevivente que deu início não somente aos depoimentos, mas toda a sensação de trazer à memória os detalhes e lembranças doloridas do dia 27 de janeiro de 2013 para ela e todos os participantes da sessão. A ex-funcionária compartilhou suas funções realizadas na boate naquela noite, e detalhou questionamentos com o auxílio da apresentação virtual criada da Boate Kiss, que permitiu que fossem aprofundadas as características do local.
Além disso, Kátia contou sobre a luta com a recuperação. Com 40% do corpo queimado pelo incêndio, ficou 46 dias hospitalizada e precisou de várias cirurgias. Seu depoimento teve duração de quatro horas e meia, com questionamentos da defesa.
A segunda pessoa a depor foi a também sobrevivente Kelen Giovana Leite Ferreira. Kelen teve 18% do corpo queimado e precisou ter seu pé direito amputado. Ao detalhar como foi estar em meio à tragédia da boate, a sobrevivente também detalhou características do local, onde estava quando tudo começou e a perda de amigos no ocorrido.
Seu depoimento iniciou às 20h10min e durou duas horas, sem questionamentos da defesa. Após isso, o júri foi encerrado e foi retomado nessa quinta-feira, às 9h da manhã.
Segundo dia de julgamento
A quinta-feira (02) deu continuidade ao julgamento do caso Kiss com mais um depoimento de um sobrevivente da tragédia. Trata-se de Emanuel de Almeida Pastl, que esteve na Boate Kiss pela primeira vez em 27 de janeiro de 2013 para comemorar o aniversário junto ao seu irmão gêmeo. Em seu depoimento, o sobrevivente compartilhou como era a estrutura de segurança da Kiss no dia do incêndio, relatando que não haviam alarmes, nem iluminação ou sinalização de emergência.
Emanuel traz consigo muitas marcas do ocorrido, com cicatrizes de queimadura de segundo e terceiro grau na pele e sequelas pulmonares. Seu irmão também possui problemas no pulmão. Emanuel, hoje Engenheiro de Segurança, ficou internado por 10 dias, quatro deles intubado em uma UTI no município de Canoas.
O segundo depoimento do turno da manhã foi da também sobrevivente Jéssica Montardo Rosado. Ao compartilhar como se salvou do incêndio, Jéssica relatou com muita emoção a dolorosa perda de seu irmão na tragédia. Ela, o irmão Vinicius e alguns amigos estavam na boate como clientes e, no momento em que o fogo iniciou, Jéssica perdeu seu irmão de vista. Hoje, o que sabe são relatos de que Vinicius entrou no local e conseguiu salvar várias pessoas.
A sobrevivente relata que assistiu como aconteceu o início das chamas quando o artefato pirotécnico foi erguido. Além disso, compartilhou que o réu Elissandro Spohr tentou entrar na boate e foi impedido, e que o réu Luciano Bonilha Leão abraçou e chorou com seu pai após a tragédia. Jéssica, assim como outras testemunhas, teve o auxílio das imagens virtuais da Boate Kiss para detalhar as características do lugar e qual caminho seguiu para conseguir se salvar.
A tragédia da Boate Kiss para castilhenses
Com o início do julgamento do caso Kiss, é possível sentir que todos que se envolveram e se sensibilizaram com a causa passam por uma semana de, inevitavelmente, relembrar suas dores e sentimentos sobre a tragédia. O SEMANÁRIO REGIONAL, em busca de compreender como famílias castilhenses que perderam um ente querido estão vivendo esse momento, traz o depoimento de uma mãe, de Júlio de Castilhos, que perdeu a filha no incêndio da Boate Kiss.
Valéria Quevedo da Rosa é castilhense, mas hoje não reside mais no município. Em 27 de janeiro de 2013, Valéria perdeu sua filha Cristiane Quevedo da Rosa, de 19 anos. Cristiane residia em Santa Maria na época, onde cursava Terapia Ocupacional na UFSM. Estava na boate à trabalho, onde havia começado os serviços três semanas atrás.
“Ela foi uma menina maravilhosa, iluminada, linda por dentro e por fora enquanto esteve aqui. Agradeço ela ter pertencido à minha família” disse Valéria.
A mãe de Cristiane compartilhou que, nos dois primeiros anos após a tragédia, o luto foi uma fase difícil e complicada. Hoje, após quase nove anos, sua família buscou seguir lembrando dos momentos bons vividos com a filha.
“Se existisse uma alternativa, uma forma de ter ela de volta, iriamos até o fim do mundo. Mas não tem. Todas as vezes que lembrarmos dela vai ser sorrisos e lembranças boas por tudo que ela foi pra nós” compartilhou a mãe.
Ao falar sobre o julgamento do caso, Valéria compartilhou que a família escolheu se reservar, pois é um momento que mexe com as emoções e traz lembranças, mas que admira e respeita os familiares que seguiram em busca de mais respostas.
“Respeito e admiro os pais que estão à frente. Nós não estamos acompanhando… quando eu começo a ouvir eu desligo. Você fica pensando, e sofre tudo novamente. Foi horrível, foi criminoso. Tinha uma saída só, não tinha sinalização. Tem muitos culpados. Mas acho que quanto mais ódio e mágoa se guardar, também não vamos ficar bem. Para nós, eu penso que ela está bem, que está em outro plano, que descanse e tenha paz. Nós estamos bem, porque sabemos que ela foi uma menina maravilhosa” concluiu Valéria.
Além de Cristiane, outros três jovens castilhenses faleceram em decorrência do incêndio da boate. O julgamento do caso kiss seguirá acontecendo diariamente com previsão de duração por duas semanas, e está sendo transmitido ao vivo pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.